sexta-feira, 20 de novembro de 2009

DOAÇÕES DE ÓRGÃOS, DOAÇÕES DE SENTIDO

Zenilda Cardozo faz Doação de Órgãos! Apesar do título, Doação de Órgãos, que remete a uma circunstância extremamente séria e delicada para a sociedade, trata-se de um projeto de arte e não de uma campanha publicitária em prol da saúde pública. No entanto, esse projeto de arte replica em seus meandros a circunstância, igualmente delicada e complexa, que envolve todo artista e sua produção em busca de um espaço de projeção e sobrevivência sócio-cultural e artística. Nesse emaranhado de ações, expectativas, urgências, políticas e esperas angustiantes, a artista Zenilda Cardozo pretende discutir a pulsão criativa, o (des)conhecimento, a (in)visibilidade, os trâmites de inscrição social e artística e os jogos de poder e legitimação próprios do mundo, o que inclui o mundo das artes.
Pois bem, nesse contexto, assumindo-se como uma espécie de “artista da fome” que, como descreveu Kafka, é o único que mantém convicção quanto ao que faz e assim mesmo nunca está verdadeiramente satisfeito, Zenilda Cardozo, “sofrendo na carne”, segue trabalhando, insistente e infinitamente. Em seu repertório material (fios de cobre, miçangas, tecidos, pedrarias) encontra o gesto e os artifícios próprios para a vazão de sua necessidade de produção simbólica, de busca de sentido e registros da vida e, como todo artista, espera o reconhecimento e o olhar do outro para seus feitos, onde inscreve a aprovação de si. Nessa constância, sempre por um fio, literalmente, ela agora apresenta uma parte de seus resultados num projeto de múltiplas doações: doações de tempo, doações de órgãos, doações de trabalho, doações do corpo, doações de sentido e interpretações viáveis.
Seus objetos são recriações livres de órgãos e tecidos do corpo humano, ora privilegiando sua anatomia, ora explorando sua função sistêmica ou, simplesmente poetizando plasticamente suas impressões particulares sobre tais elementos. Nesses objetos/órgãos não há rigidez de concepção e os acasos são bem-vindos, tanto quanto os insights para avanços futuros. A rigidez está na forma como esse projeto vem a público e, em cada etapa: através de um convite eletrônico pessoal, as pessoas (eleitos?) foram encaminhadas para um blog: http://doacoesdocorpo.blogspot.com/ (disponível de 27 de julho a 15 de setembro) onde podiam candidatar-se para receber em doação um órgão/objeto, criado pela artista, participando assim de uma ação artística batizada pela autora como Doações do Corpo. Exigia-se nessa candidatura uma justificativa para a opção desejada, bem como a leitura e o aceite dos termos expressos num longo regulamento que, propositalmente, fora escrito de forma análoga aos regulamentos que acompanham os salões de arte contemporânea. Situação contratual que a maioria dos artistas conhece bem e da qual não consegue escapar (pelo menos não completamente) quando se lhes exige a comprovação de um currículo artístico. Historicamente, conseqüência da autonomia da arte (processo iniciado já no Renascimento), os artistas se vêm submetidos a um roteiro tácito de mediações especializadas que selecionam e indicam, por assim dizer, o que responde, em cada tempo, àquilo que se convencionou chamar de arte. Assim, nesse trabalho de Zenilda, a homologia entre sistema de saúde/ sistema de arte se completa na inclusão de uma cláusula que dispõe sobre a irrevogável decisão de uma comissão julgadora formada por especialistas (não identificados até o final do “certame”) que determinará a quem serão destinados os órgãos/prêmios pleiteados.
Nessa urdidura de equivalências fica clara a intenção da artista em vincular a necessidade de visibilidade de uma produção simbólica enquanto produção artística, sob as tramas/dramas de um sistema que legitima por exclusão. Os circuitos artísticos formam um sistema de engrenagem dinâmica, policêntrica e multifuncional, acelerado nesse nosso tempo pelas tecnologias de informação e comunicação, que reúne estudos acadêmicos, estratégias publicitárias e políticas públicas para a construção da autoridade institucional e, ao mesmo tempo, à manutenção do liberalismo de um mercado próprio. No entanto, com as operações Doações do Corpo e Doação de Órgãos, a artista não se empenha numa crítica para a negação dos processos institucionalizantes, mas, antes, vale-se da demonstração desse funcionamento seletivo enquanto estratégia de inserção pelo “avesso”, muito comum no mundo das artes, sobretudo a partir dos anos de 1960.
Num ofício diário, cheio de traquejos, habilidades e sutilezas, Zenilda vai forjando órgãos cheios de VIDA, no interminável processo de criação e doação de si, de sua sensível percepção do mundo dos seres vivos (inclusive do mundo das artes). Mas para quem? Para onde encaminhar suas “doações”? Quando os artistas já não precisam mais produzir sob encomendas oficiais, como outrora produziram para o Estado e para Igreja, dadas as dificuldades de exibição/ aceitação/ consumo de suas obras, profissionalmente, afinal, produzirão então para quê, para quem?
Tentando responder essa premissa incontornável, ela, enquanto “artista da fome”, encontra, nessa tessitura de significados, toda uma ciência capaz de reprogramar a si mesma sem abandonar sua natureza estética, inapreensível pelo consumo conspícuo. E, enquanto encaminha seu projeto de Doação de Órgãos, a artista também suscita questões que, entre outras possibilidades, versam sobre a biociência, a bioética, a biodiversidade. Contudo, sendo Doações do Corpo e Doações de Órgãos, dois momentos de um trabalho que resulta da pulsão artística psíquica (FREUD), estes também tangenciam e instigam reflexões maiores, na extensão dos conceitos de BIOLOGIA: VIDA = ARTE=ARTE de VIVER + ARTE = + VIDA.


Bianca Knaak*
*Professora Adjunta do Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS. Doutora em História, entre 1999 e 2002 dirigiu o Instituto Estadual de Artes Visuais e o Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul.

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